“E agora que vocês viram no que a coisa deu, jamais esqueçam como foi que tudo começou” (Bertolt Brecht)

domingo, 22 de outubro de 2017

Especiarias da China

Trazidos para cultivar chá no Rio de Janeiro, os primeiros imigrantes chineses a desembarcar no Brasil sofreram com o preconceito e as más condições de vida.
Geraldo Moreira Prado e Rael Fiszon Eugênio dos Santos
      Se, a despeito da globalização, os modos e cultura chineses ainda causam estranheza entre nós, imagine-se então no começo do século XIX! As fontes históricas disponíveis sobre o Rio de Janeiro, naquela época, mostram que a população da cidade era composta de comerciantes, trabalhadores livres, nobres luso-brasileiros, viajantes europeus e, em sua maioria, de escravos africanos. Mas, como destacam alguns historiadores, jornalistas e naturalistas que visitaram o Brasil no século XIX, havia também chineses, trazidos ao Brasil para cultivarem o chá na Real Fazenda de Santa Cruz, situada na Zona Oeste da cidade, e no Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
      A este grupo de chineses se devem as primeiras experiências brasileiras de cultivo da planta conhecida pelo nome científico de Camellia sinensis, nativa da China. Alguns poucos livros, como o clássico D. João VI no Brasil, do historiador pernambucano Oliveira Lima, destacam a presença chinesa no Brasil. O mais comum entre os autores, no entanto, é apontarem os suíços que se estabeleceram na região serrana de Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro, em 1818, como a primeira força de trabalho estrangeira, e livre, a atuar no país cuja economia era então sustentada pelo braço escravo. Ao lado dos suíços, os colonos chineses também tiveram papel relevante, protagonizando um projeto que seria a menina-dos-olhos de d. João VI, mas cujos resultados acabaram infelizmente ficando bem aquém das expectativas.
      O hábito de tomar chá chinês (dito inglês) surge por aqui a partir da chegada da família real portuguesa, em 1808, que introduz na acanhada colônia hábitos europeus mais sofisticados. A ideia de d. João, príncipe regente e futuro rei de Portugal, era cultivar o produto por aqui mesmo, dispensando as importações e transformando-o em fonte de riqueza. O número de trabalhadores chineses que ficaram no Brasil no período com esse propósito, bem como suas origens, não são exatos. Benedicto Freitas se refere a uma centena, mais ou menos, e seriam eles provenientes de Macau e Cantão. Sabe-se que primeiramente desembarcaram 45 colonos, em 1815 - e, segundo Fania Fridman, provenientes de Macau. Mas havia também chineses de outras regiões. Johann Luccock, viajante que chegou ao Brasil em meados de 1808, referindo-se ao chefe dos lavradores residentes na Fazenda Santa Cruz, diz ser ele originário de Nanquim.
      Pelos relatos que ficaram, a fazenda, naquela época, principalmente graças aos cuidados de d. João, pessoalmente empenhado no projeto, parecia algo muito próximo do paraíso. Na visita ao local, a viajante Maria Graham, além de testemunhar o interesse do monarca português pelo assunto, descreve um cenário que mistura trabalho, sonho e fantasia. Segundo ela, d. João mandara construir na Fazenda Santa Cruz portões e cabanas, em estilo chinês, que ficavam próximos a canteiros abrigando arbustos da erva, de folhas escuras e brilhantes e flores semelhantes às da murta. Tais canteiros eram cercados por caminhos onde se misturavam laranjeiras, roseirais e uma linda espécie de mimosa, formando belos jardins. Desse modo, a "China de Santa Cruz", escreveu Maria Graham, se tornara um dos pontos mais aprazíveis para os visitantes.
      No diário de viagem escrito durante sua estadia nas cortes de d. João VI e d. Pedro I (1821 a 1823), Maria Graham registra que introduzir o chá da China no Brasil era de fato um dos projetos favoritos de d. João, cujo entusiasmo foi também testemunhado por Johann Luccock. Para compor o cenário físico da Fazenda Santa Cruz, há os registros pictóricos do artista inglês Thomas Ender (18171818) mostrando a peculiaridade no modo de vestir e nos hábitos - particularmente o de fumar cultivados pelos chineses. O pintor também registrou a arquitetura diferenciada do local. Nos desenhos do príncipe Maxiliano Wied-Neuwied, datados de 1815, é possível perceber detalhes das cabeças de chineses em poses de perfil, sentados às margens dos caminhos ou segurando um caniço.
      Tudo parecia que ia muito bem, mas não era verdade. O clima supostamente idílico da Fazenda Santa Cruz não duraria muito. Contra os chineses e o projeto de d. João se levantariam em breve duas forças imbatíveis: o preconceito e as leis do mercado. Houve quem criticasse as peculiaridades comportamentais dos chineses na relação do trabalho e no modo de assimilar as informações recebidas. Luccock, por exemplo, achava que eram meticulosos no modo de lavrar e que alguns chineses demonstravam rapidez de assimilação. Considerava, no entanto, que a maioria deles era extremamente ignorante, "como jamais se viu em outra raça". O preconceito em Luccock ia ainda mais além: "Tais como os gregos modernos, a inteligência deles se desviou e o caráter envileceu". As condições que cercaram a vinda dos chineses já eram reveladoras de um futuro nada promissor. Não puderam trazer mulheres, para que seus traços orientais não passassem a descendentes brasileiros, e, aqui, eram proibidos de se aproximar da senzala, a fim de se evitar eventuais relações íntimas com escravas.
      Os resultados negativos desse regime de opressão a que foram submetidos, certamente agravado pela barreira da língua, surgiram quatro anos após a chegada dos primeiros imigrantes. Em 1819, 51 chineses subscreveram um abaixo-assinado que foi referendado por José Bonifácio e enviado a d. João VI. No texto, solicitavam um intérprete para auxiliá-los nos tribunais. É que alguns deles haviam virado réus, em consequência de fugas verificadas na colônia chinesa de Santa Cruz. Segundo a acusação, grupos de chineses que haviam deixado a lavoura de chá saíam pela cidade cometendo "abusos" e "desordens". As fugas eram consequência das condições a eles impostas na fazenda, pois, como escreveu Maria Graham em seu diário, "ninguém foge de onde vive bem".
      Segundo Fania Fridman, a relação de trabalho desses chineses tinha na verdade características escravocratas, pois "recebiam apenas 160 réis por dia, não podiam comerciar nem ir à cidade, dormir fora da colônia ou receber visitas". Graham, no entanto, considerou que o salário tinha um valor significativo na época. Não se pode afirmar que a força de trabalho chinesa no Brasil se submetia às características clássicas do escravismo. Havia, sim, relações de hierarquia que tinham de ser observadas e a presença de feitores, típicas do regime escravocrata. Documento de 1817 nomeia um chinês de nome "Bexiga" como feitor de Santa Cruz. Sua tarefa era controlar os conterrâneos rebeldes.
      Em 1825, o chinês João Antônio Moreira (nome adotado), que vivia no Brasil há mais de 11 anos e trabalhava há cerca de seis em Santa Cruz, enviou requerimento ao intendente da polícia, Francisco Alberto Pereira Aragão (1824-1827), solicitando sua nomeação para o cargo de capitão, a fim de auxiliar as autoridades no controle dos abusos cometidos por conterrâneos. Segundo o referido requerimento, certo número de chineses, tendo abandonado o cultivo do chá, desenvolveu total relaxamento dos costumes, formando "partidos" (leia-se bandos) e cometendo roubos. O intendente recomendou ao imperador d. Pedro I recusar o pedido, alegando que os chineses estavam suficientemente habituados ao país e não precisavam portanto de tratamento diferenciado: "Procedimentos errados deveriam ser tratados nos moldes da lei", afirmou.
      Percebe-se, na análise do documento, que os primeiros chineses do Brasil não constituíam um grupo homogêneo. O próprio João Antônio Moreira, considerado chinês, deveria pertencer a um determinado partido, pois denunciava os "abusos" de seus compatriotas que se organizavam em três grupos ou "partidos" denominados Cantão, Macau e Chá. O tempo passou e com ele algumas diferenças se dissiparam. O rígido controle da Coroa não impediu que em 1825 alguns chineses conseguissem licenças para mascatear na cidade do Rio de Janeiro e em outras cidades do sudeste brasileiro. Sobre isso, fontes históricas registram que durante o século XIX o território brasileiro foi palco de muitas experiências similares com trabalhadores livres estrangeiros. Nestes contingentes se encontravam também chineses, que a partir do decênio de 1833 se fixaram em vários pontos do país, particularmente o interior dos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná.
      Quanto ao cultivo do chá, o sonho tão acalentado por d. João VI, virou frustração. Frei Leandro, primeiro diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, em sua obra Memória econômica sobre o cultivo e preparo do chá (1825), reclama do despreparo dos agricultores brasileiros no cultivo da planta. Por este motivo, o chá não se disseminou no Brasil e na colônia chinesa de Santa Cruz malogrou. Em vez do chá, a economia preferiu o café, que continuou sendo produzido, exportado, acumulando e reproduzindo a riqueza das elites "nobiliárquicas" brasileiras. O fato é que o chá chinês deixou de ser produzido no Brasil e passou a ser importado da Inglaterra.
      Na análise de Maria Graham, os custos do investimento para o cultivo de chá eram muito elevados para a Coroa. Como os salários pagos aos chineses incidiam no preço de venda final do produto, a baixa produção, quase artesanal, não era suficiente para garantir o investimento. Analisando-se o caso pela perspectiva de hoje, é possível supor que a iniciativa de d. João VI tenha fracassado por falta de planejamento inicial, evidenciado pela desigualdade na concorrência com o café, cuja produção, para exportação, já ocorria em ampla escala, consolidando-o como o "produto-rei" da economia agrária brasileira, como afirmou a professora Maria Yedda Linhares.
      O hábito de tomar chá, no entanto, persistiu. O pioneiro da venda do produto no Rio de Janeiro foi o comerciante José Praxedes Pereira Pacheco, que fundou a Loja da China "à Rua da Candelária, 18, defronte da Igreja", conforme nos informa o Almanak Laemmert, de 1845. Segundo a propaganda, o estabelecimento tinha "o mais completo e variado sortimento de chá verde e preto, e também chá nacional das províncias de S. Paulo e Minas". Não encontramos registros sobre o plantio do chá em Minas, mas, em São Paulo, o produto começou a ser cultivado a partir de 1833, pelo marechal José Arouche de Toledo Rendon.
      Se os planos de d. João não deram certo, serviram pelo menos de "teste" para estimular a entrada de trabalhadores estrangeiros livres no Brasil. A partir daí, e pelo restante do século XIX e século XX, mais chineses iriam criar raízes no solo brasileiro. Em 15 de agosto de 1900 foi oficializada a entrada de 107 imigrantes chineses no país, radicados, em sua maioria, na cidade de São Paulo e um pouco menos no Rio de Janeiro. Intelectuais cariocas da década de 1920, como João do Rio, Benjamin Costallat e Álvaro Moreira, comentavam sobre chineses morando miseravelmente no Centro do Rio de Janeiro, nas proximidades da Praça XV, e ainda consumindo ópio.
      Com a revolução socialista chinesa de 1949, ocorreu uma diáspora para o Brasil, especialmente para a cidade de São Paulo. Nos últimos anos, eles se espalharam pelas principais capitais brasileiras, e São Paulo continua reunindo o maior contingente, mais de 130 mil pessoas (incluindo-se aí os descendentes), segundo dados apresentados pela Folha de S. Paulo, de 22/3/2005. Distribuídos pelos bairros da Liberdade, Vila Mariana, Cambuci, Aclimação e Vila Olímpia, dividem espaços com a comunidade japonesa e contribuem também para a diversidade da culinária brasileira com suas famosas lojas de pastéis e caldo de cana.
Geraldo Moreira Prado é historiador, PhD em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, e pesquisador do CNPq.
Rael Fiszon Eugênio dos Santos é graduando em História pela Universidade Federal Fluminense.

Fonte: Revista Nossa História - Ano III nº 36 - Outubro 2006

Saiba Mais – Bibliografia
ENDER, Thomas. Viagem ao Brasil nas aquarelas de Thomas Ender (1817-1818). Petrópolis, RJ: Kapa Editora, 2000.
FREITAS, Benedicta Santa Cruz: fazenda jesuítica, real, imperial. Vol. II: Vice-reis e reinado (1760-1821). Rio de Janeiro, 1987.
FRIDMAN, Fania. Donos do Rio em nome do rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor e Caramond, 1999.

OLIVEIRA UMA, Manuel de. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1945.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Operação Condor - O Voo Mais Longo da Repressão

Multinacional clandestina da perseguição política na década de 1970, para seus agentes não existiam fronteiras. Sua missão era caçar, prender e muitas vezes matar os inimigos dos governos militares da América do Sul, onde quer que estivessem.
Samantha Viz Quadrat
           Na noite de 13 de julho de 1976, 15 policiais comandados por um oficial uruguaio, o major José Nino Gavazzo, invadiram uma casa da Rua Juana Azurduy, no bairro de Belgrano, em Buenos Aires. Dentro, Sara Mendez e sua amiga Asilu se preparavam para dormir. Sara, de 32 anos, trazia nos braços seu filho, o bebe Simon, de apenas 20 dias. Foi levada com Asilu a um centro clandestino de tortura, onde lhe tomaram a criança. Ela só voltaria a ver Simon 25 anos depois.
          Esta e muitas outras histórias, igualmente dramáticas, fizeram a fama da chamada Operação Condor, nascida no Chile com o objetivo de varrer do Cone Sul tudo o que fosse considerado "subversivo" pelos militares então instalados no poder, pelo uso da força, em vários países do continente, inclusive o Brasil.
           O coronel chileno Manuel Contreras, chefe da DINA, a polícia política do governo de Augusto Pinochet, tomou a iniciativa de convidar os principais representantes do setor de informações dos países do Cone Sul para uma reunião secreta, realizada em Santiago do Chile, entre os dias 25 de novembro e 1º de dezembro de 1975. Foi o primeiro passo para a montagem do aparato repressivo.
          Os acordos firmados nesse primeiro encontro visavam basicamente ao funcionamento da operação, que aliás ainda não tinha nome. Foi batizada de "condor" por sugestão do representante uruguaio. Figura simbólica do brasão chileno, o condor é a maior ave de rapina da América do Sul, capaz de alcançar altas e longas distâncias. O nome foi bastante apropriado. O voo do condor, como queriam os que batizaram a nova estratégia, não ficou restrito aos territórios dos países membros da operação.
          Nesse primeiro momento o Brasil, então governado pelo general Ernesto Geisel, não enviou nenhum representante à reunião secreta. Aparentemente havia resistência do governo brasileiro a envolver-se na operação. Teria aceitado apenas participar do intercâmbio de informações. A participação brasileira, contudo, não foi tão restrita quanto se pensava.
          Um dos episódios de maior destaque, nesse período, ocorreu justamente em território brasileiro. Em novembro de 1978 executou-se a chamada Operação Sapato Velho - resultado de uma parceria entre o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), de Porto Alegre, e oficiais do exército do Uruguai. O objetivo era o sequestro dos uruguaios Lilian Celiberti - junto com seus dois filhos menores, Camilo e Francesca - e Universindo Rodriguez Diaz. Presos no Brasil, Lilian e Universindo foram torturados e interrogados no DOPS de Porto Alegre. As crianças, entregues a uma avó. A salvação do casal se deve à imprensa brasileira, no caso representada pelos jornalistas Luís Cláudio Cunha e João Batista Scalco. Eles identificaram policiais envolvidos e denunciaram o sequestro.
          Entre as ações da Operação Condor fora da América do Sul figura o assassinato, num atentado a bomba ocorrido no dia 21 de setembro de 1976, de Orlando Letelier, ex-ministro de Salvador Allende e uma das principais lideranças de oposição à ditadura de Pinochet no exterior. O caso chama especialmente atenção por ter ocorrido na capital dos Estados Unidos, considerada um dos lugares mais seguros do mundo, ao mesmo tempo em que sugere a conivência de agentes norte-americanos.
          Os órgãos de inteligência norte-americanos tinham conhecimento de todas as violações ocorridas nos países do Cone Sul sob ditaduras. Além disso, os Estados Unidos despendiam vultosas verbas no treinamento de militares da América Latina, tanto no seu território como na Escola das Américas, situada no Panamá. Este centro de treinamento militar ficaria conhecido como "Escola dos Assassinos", por haver acolhido e formado inúmeros militares que mais tarde se envolveriam, nos respectivos países, em ações hediondas de violação de direitos humanos.
          O longo voo do condor alcançou também o Velho Mundo. Em 6 de outubro de 1975 Bernardo Leighton, ex-vice-presidente do Chile e alto dirigente do Partido Democrata Cristão, sofreu um atentado a bala na capital italiana. Esta e outras ações foram comandadas pelo norte-americano Michael Townley, um ex-informante da CIA que se tornou um seguidor fiel de Contreras, o chefe da DINA.
          A despeito de todas as vítimas que fez desde 1975 até o final das ditaduras nos anos 80, a Operação Condor acabou se tornando, paradoxalmente, passado o tempo das ditaduras sul-americanas, um dos principais trunfos na luta internacional contra a impunidade. Alguns países, como França e Itália, têm julgado os crimes cometidos contra seus cidadãos ou pessoas com dupla nacionalidade. Outros, como a Espanha, têm-se utilizado da lei que garante que os crimes contra a humanidade podem ser julgados em seus tribunais. E já que esses tribunais não reconhecem as leis de anistia decretadas nos países da América do Sul depois da chamada guerra suja, promovem-se hoje batalhas judiciais em vários países com o objetivo de prender e punir os culpados, por mais longe que estejam.
Samantha Viz Quadrat é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense e Coordenadora do Núcleo de Estudos Contemporâneos desta mesma Universidade.     

Fonte – Revista Nossa História - Ano I nº 2 - Dez. 2003

Saiba Mais – Bibliografia
GUENA, Márcia. Arquivo do horror. Documentos secretos da ditadura do Paraguai (1960-1980). São Paulo: Fundação Memorial da América Latina,1996.
MARIANO, Nilson. As garras do condor. Petrópolis: Vozes, 2003.
MIRANDA, Nilmário e TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo. São Paulo: Perseu Abramo/Boitempo, 1999.
SÁBATO, Ernesto (org). Nunca mais. Porto Alegre: L&PM, 1984.

Saiba Mais – Links

Documentário
Condor – O Filme
Condor foi o nome dado à sinistra conexão entre governos militares sul-americanos, com o apoio da CIA, que culminou com a morte de cerca de 30 mil pessoas nos anos 70. Outros 400 mil foram presos e 4 milhões exilados. Roberto Mader conta essa história através de depoimentos emocionantes e surpreendentes de generais e ativistas políticos, torturadores, vítimas e parentes dos desaparecidos. Condor foi filmado em quatro países e traz um material de arquivo, acompanhado de belas composições de Victor Biglione.

Direção: Roberto Mader
Ano: 2007
Áudio: Português
Duração: 110 minutos



domingo, 15 de outubro de 2017

Condenado ao desprezo

Difamado pela direita e pela esquerda e subestimado nos meios acadêmicos apesar de sua importância histórica, João Goulart foi o único presidente brasileiro a morrer, de tristeza, no exílio.
Jorge Ferreira
      João Belchior Marques Goulart, o Jango, foi uma das personalidades políticas mais importantes no Brasil do século XX. Reconhecido pelas esquerdas e pelo movimento sindical como líder reformista e nacionalista, era identificado pela população como o herdeiro político de Getúlio Vargas e do trabalhismo. No entanto, após o golpe civil-militar que o derrubou da Presidência da República, em 1964, a imagem de Jango foi relegada ao esquecimento. Diferentemente de Getúlio ou de Juscelino Kubitschek, pouco se fala dele - e, quando se fala, fala-se mal. Como explicar que uma liderança popular tão importante tenha sido esquecida pela sociedade?
      Sua trajetória política começou com o retorno de Getúlio Vargas a São Borja, em 1945, após ter sido afastado pelos militares da Presidência. Abandonado por amigos, pouca gente além de Jango o visitava, nascendo entre os dois forte amizade. Getúlio o aconselhou a ingressar no Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Em 1947, foi eleito deputado estadual e, em 1950, deputado federal, mas assumiu a Secretaria do Interior e Justiça do governo gaúcho. No entanto, Vargas, agora presidente eleito, necessitava do amigo por perto. Assim, Goulart assumiu a presidência do PTB em junho de 1952 e, um ano depois, foi nomeado ministro do Trabalho.
      O novo ministro tomou medidas que beneficiaram os trabalhadores, como fiscalizar o cumprimento das leis sociais. Jango procurava soluções para as greves na mesa de negociação e, uma vez por semana, recebia trabalhadores e sindicalistas para conversar. Os políticos conservadores ficaram chocados. Afinal, um ministro estava recebendo, em seu gabinete, gente de origem social humilde. Na imprensa, Carlos Lacerda desferia-lhe ataques violentos, chamando-o de "despreparado", "ignorante", "demagogo", "corrupto", "manipulador dos operários" e frequentador de cabarés. Sua última iniciativa foi a de propor que o salário mínimo, muito corroído pela inflação, fosse duplicado. Com um manifesto, militares criticaram o governo e o ministro. Para preservar Getúlio, Jango combinou com ele a própria demissão. Deixou o ministério em fevereiro de 1954, com grande prestígio no movimento sindical e no PTB.
      Goulart estava afinado com a conjuntura europeia de valorização da democracia e do modelo de Estado de bem-estar social e com o sentimento antiimperialista latino-americano. Seu projeto de trabalhismo era o de firmar um pacto social entre empresários e trabalhadores, ampliando o mercado interno e distribuindo a renda, tendo o nacionalismo como matriz para o desenvolvimento do país.
      Para as eleições presidenciais de 1955, PSD e PTB lançaram Juscelino para presidente e Goulart para vice. Visando a prejudicar Jango, Lacerda apresentou carta falsificada atribuída ao deputado peronista Antonio Brandi, afirmando que Goulart preparava uma guerra civil no Brasil. Mesmo difamado pela direita, ele comprovou seu prestígio. Concorrendo à vice-presidência, teve 600 mil votos a mais que Juscelino - na época, os votos para presidente e vice não eram vinculados. Em 1960, Jânio Quadros venceu as eleições e Goulart foi novamente eleito vice-presidente. Meses depois, com a renúncia do primeiro, a cúpula militar vetou sua posse. Deu-se, a partir daí, um dos episódios mais marcantes de toda a República. No Rio Grande do Sul, o governador Leonel Brizola defendeu os direitos de Jango com a Campanha da Legalidade. Empresários, sindicalistas, a UNE, a OAB, a CNBB, os partidos políticos e a imprensa alinharam-se pela defesa da Constituição. O próprio Exército se dividiu. A saída conciliatória surgiu com a adoção do parlamentarismo como novo sistema de governo. Contrariado, Goulart aceitou a mudança de regime. Afinal, o país estava dividido.
      No dia 7 de setembro de 1961, ele assumiu a Presidência, sob gravíssima crise militar e política, com as contas públicas descontroladas e tendo que administrar um país endividado. Seu programa de governo tinha por objetivo alterar as estruturas econômicas e sociais do país - eram as chamadas "reformas de base". Entre estas constavam as reformas bancária, fiscal, urbana, tributária, administrativa, agrária e universitária, além da extensão do voto aos analfabetos, o controle do capital estrangeiro e o monopólio estatal de setores estratégicos da economia.     Jango tinha uma dupla estratégia: sabotar o parlamentarismo e ampliar sua base política com a aliança entre PTB e PSD. Quanto ao primeiro item, obteve sucesso. No plebiscito de 6 de janeiro de 1963, sua vitória foi avassaladora: dos 11,5 milhões de eleitores, 9,5 milhões aprovaram o retorno do presidencialismo. Mas no segundo encontrou resistências. O movimento sindical, as esquerdas e setores radicais do PTB exigiam que Goulart governasse somente com eles, excluindo o PSD. Os tempos não eram de diálogo, mas de radicalização. Sob a liderança de Leonel Brizola, seu cunhado, as organizações de estudantes, camponeses, sindicalistas, sargentos e grupos da esquerda exigiam "reforma agrária na lei ou na marra". Os parlamentares do PSD, assustados com a radicalização, aproximaram-se de membros da União Democrática Nacional (UDN) - que fazia forte oposição ao governo de Goulart -, formando uma aliança conservadora dentro do Congresso.
      Vitorioso no plebiscito, Goulart apresentou seu programa de estabilização econômica. Formulado pelo economista Celso Furtado, o Plano Trienal era inovador: previa primeiro o controle da inflação seguindo os acordos com o FMI; depois, a implementação da reforma agrária. As esquerdas atacaram o projeto e os empresários também se opuseram. Sem apoio político, o plano fracassou. Como alternativa, Jango apresentou o projeto da reforma agrária. Embora o PSD aceitasse medidas moderadas, as esquerdas exigiam uma reforma radical, sem indenizações. Ao mesmo tempo, o governo norte-americano bloqueou os créditos ao Brasil, exigindo o combate à inflação com arrocho salarial e recessão. Jango preferiu regulamentar a Lei de Remessa de Lucros. Do capital que as empresas estrangeiras investissem no país, o dispositivo limitava em apenas 10% ao ano o envio dos lucros para o exterior.
      Em outubro de 1963, sob feroz ataque de Carlos Lacerda, o presidente propôs o estado de sítio, o que implicava a suspensão temporária de certas garantias constitucionais. Ao mesmo tempo, políticos, empresários e militares de direita, organizados no complexo Ipes-Ibad, se articulavam para conspirar contra o governo, desencadeando ampla campanha anticomunista.
      Goulart enfrentava grandes dificuldades. O governo norte-americano estava determinado a estrangular financeiramente o Brasil. A estratégia de coligar os "pessedistas" com os trabalhistas não avançou. Para a ala radical do PTB e as esquerdas, buscar o apoio do PSD não passava de "política de conciliação". Foi no afastamento entre o centro e a esquerda, marcada por crescente radicalização, que as direitas civis e militares golpistas cresceram.
      No comício de 13 de março, na Central do Brasil, Goulart aliou-se às esquerdas, adotando a estratégia de entrar em confronto com os conservadores. A proposta era a de mobilizar os trabalhadores contra o Congresso, obrigando os parlamentares a aprovar as reformas. Na avaliação de Maria Celina D'Araujo, o projeto reformista incluía a tomada do poder pelos setores mais radicais do PTB.
      Após o comício, Jango apresentou ao Congresso as reformas de base, inclusive a reforma agrária sem indenizações. A partir daí, o conflito entre esquerda e direita se radicalizou ainda mais. Para a cientista política Argelina Figueiredo, as forças da direita sempre estiveram dispostas a romper com a ordem democrática, utilizando-as para defender seus interesses. Mas as esquerdas, por sua vez, também lutavam pelas reformas a qualquer preço, inclusive com o sacrifício da democracia. Dias depois, marinheiros rebelaram-se contra o comando da Marinha de Guerra. A anistia que receberam do governo atingiu a integridade profissional das Forças Armadas. Para os militares, tratava-se da quebra da disciplina e da hierarquia, com apoio governamental. Os oficiais legalistas finalmente cederam aos argumentos de seus minoritários colegas conspiradores. Rapidamente a direita golpista cresceu e ganhou o apoio de amplos setores civis e militares.
      No dia 1 de abril de 1964, o presidente foi deposto. Jango não resistiu ao golpe civil-militar por duas razões. A primeira é que os envolvidos no golpe não imaginavam que uma ditadura se imporia por 21 anos. Pesquisas comprovam que a coligação militar-civil golpista era contra as esquerdas, mas não a favor de ditaduras. Goulart imaginou que o golpe repetiria a trajetória do ocorrido em 1945: o presidente é deposto, conhece o exílio dentro do país e depois retoma os caminhos normais da vida política.
      A segunda razão que o fez desistir da resistência foi sua percepção da extensão do movimento. Participavam do golpe a maioria dos comandos das Forças Armadas, governadores de importantes estados, representantes de meios de comunicação, ampla coalizão partidária no Congresso, empresários e setores das classes médias. Fato mais grave: Jango soube que o governador Magalhães Pinto declararia Minas Gerais em "estado de beligerância", o que permitiria o apoio diplomático e militar dos Estados Unidos.
      Ao saber que uma frota norte-americana estava no litoral brasileiro, tomou a decisão de não resistir. Na sua opinião, iria expor a população a uma guerra civil, com risco até da divisão territorial do país. Na avaliação do jornalista Zuenir Ventura, "Jango teve um dos seus momentos mais bonitos ao evitar aquilo que imaginava que viria a ser uma guerra civil com um milhão de mortos. Conta pontos para ele não querer resistir dessa maneira. Não acho, como muitos achavam e ainda acham, que a atitude de Jango tenha sido covarde, que ele tenha fugido da luta, que ele tenha fugido do país. Chegou um momento em que ele deve ter visto que aquela seria uma luta sangrenta (...). Teve a grandeza de evitar que houvesse muitas mortes".
      Contudo, a partir daí, uma outra história sobre Goulart começou a ser contada. Os militares e civis golpistas vitoriosos amplificaram os insultos que Lacerda lançava contra ele desde 1953: "ignorante", "despreparado", "demagogo" e "corrupto", acrescentando "fraco" e "subversivo". Às ofensas dos direitistas juntaram-se os ataques das esquerdas: "paternalista", "conciliador", "covarde", "traidor da classe trabalhadora", "dúbio e vacilante devido à sua origem de classe". A seguir, setores da intelectualidade brasileira acrescentaram outra palavra ao conjunto de ofensas: "populista". E mais insultos foram formulados: "medíocre", "incompetente", "golpista" e "alcoólatra". Com o passar do tempo, Jango recebeu o desprezo político e acadêmico e foi condenado ao esquecimento. Nos livros didáticos, ele merece duas ou três linhas; na televisão, não aparece; nos jornais, sumiu de vez; nas pesquisas do Ibope, só estão Vargas, Juscelino e Sarney; na pesquisa universitária, surge como a síntese do que havia de pior no "populismo".
      Exilado no Uruguai, Jango sempre se sentiu inconformado com a proibição de seu regresso. Em 1967, Lacerda e Juscelino, deixando de lado os ressentimentos, se uniram a ele na luta pela redemocratização, formando a chamada Frente Ampla. A ditadura, no entanto, declarou a organização ilegal. No início do exílio, Goulart conseguiu dissimular sua tristeza. Mas nos dois últimos anos de vida, abandonado por todos, não tinha como disfarçar a amargura. Não conseguia compreender o ódio que os militares brasileiros lhe dedicavam se, durante sua vida pública, não perseguiu ninguém. Em 1969, sofreu um infarto.
      Com o golpe militar no Uruguai em 1973, passou a sofrer humilhações. No ano seguinte, mudou-se para a Argentina, no momento em que a extrema direita daquele país recorria a atentados. A seguir, a Operação Condor começou a eliminar líderes esquerdistas do continente. Em 1976, Goulart se sentia acuado e decidiu regressar ao Brasil. Na noite do dia 5 dezembro, dormiu com a mulher, Maria Thereza, em sua estância na Argentina. Seu objetivo era acordar, pegar o carro e viajar para São Borja, mesmo correndo o risco de ser preso. Contudo, horas mais tarde, na madrugada do dia 6, Maria Thereza, assustada, percebeu que Jango estava morto, vítima de outro infarto.
      Algumas versões falam em assassinato, por agentes da Operação Condor. Mais prudente é lembrar que Jango era cardíaco. Vale também considerar a avaliação de seu ministro da Justiça, Abelardo Jurema. Para ele, o exílio é uma experiência muito dolorosa e, se o exilado não tiver forças, ele sofre de "mal-triste". "Mal-triste é uma doença que dá no boi que sai de uma região para outra. O boi começa a ficar triste e morre." Jango, em sua avaliação, morreu de "mal-triste". "Ele não aguentou". A ditadura militar, num exemplo de mesquinharia política, quis impedir que seu corpo entrasse no Brasil e fosse sepultado em São Borja. Amigos, políticos do MDB e a população gaúcha se mobilizaram. Seu enterro foi um ato de protesto contra a ditadura. Foi o único presidente da República a morrer no exílio.

Jorge Ferreira é professor de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e organizador do livro O Populismo e Sua História (Civilização Brasileira, 2001)

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional - Edição nº 3 - Setembro de 2005

Saiba Mais – Bibliografia
BANDEIRA, Moniz. O governo João Goulart. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
D'ARAUJO, Maria Celina. Sindicatos, carisma e poder. Rio de Janeiro: Editora da FGV. 1996.
FIGUEIREDO, Argelina. Democracia ou reformas? Alternativas democráticas à crise política: 1961-1964. São Paulo: Paz e Terra, 1993.
OTERO, Jorge. João Goulart. Lembrança do exílio. Rio de Janeiro: Casa Jorge, 2001

Saiba Mais – Links

Saiba Mais – Documentário
Jango
O documentário de Sílvio Tendler acompanha a vida política de João Belchior Marques Goulart (1918-1976), o Jango, de 1950 a 1976, de seu primeiro cargo importante, como Ministro do Trabalho no governo de Getúlio Vargas, até o exílio no Uruguai e Argentina, depois do golpe de 1964. Tendler explora a vida de Jango, gaúcho de São Borja e único presidente brasileiro a morrer no exílio, apresentando imagens de filmes caseiros, documentários antigos, fotos e entrevistas, e, depoimentos importantes, como os do general Antônio Carlos Muricy, de Leonel Brizola, de Aldo Arantes, de Afonso Arinos, de Magalhães Pinto, de Frei Betto, de Celso Furtado, entre outros.
Há uma grande quantidade de imagens inéditas, como as viagens de Goulart à Russia e à China, Jango discursando na ONU,  e do comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, que, antecede ao golpe militar de 31 de março.
Documentário vencedor dos prêmios: Música Original (Milton Nascimento e Wagner Tiso), Melhor Filme (Júri Popular) e Prêmio Especial do Júri, XII Festival do Cinema Brasileiro de Gramado, RS, 1984. Prêmio Especial do Júri para Documentário, Festival Novo Cinema Latino-Americano, Havana, Cuba, 1984. Melhor Filme do Público, Festival de Nova Delhi, Índia, 1985.
Direção: Sílvio Tendler
Ano: 1984
Áudio: Português
Duração: 115 minutos

"Dossiê Jango"
Documentário reabre a discussão sobre o suposto assassinato do ex-presidente João Goulart, em 1976, e reinterpreta o período mais obscuro da história brasileira. Em clima de thriller político, a trama traz à tona novas informações para a reconstrução dos fatos. Com depoimentos de Carlos Heitor Cony, Flávio Tavares, Ferreira Goulart, Geneton Moraes Neto, João Vicente Goulart e Maria Thereza Goulart, entre outros.
O filme faturou os prêmios de Melhor Documentário pelo Júri Popular no Festival do Rio 2012; Melhor Filme de Longa Metragem pelo Júri Popular no 16º Festival de Tiradentes 2013; Melhor Documentário pelo Júri Popular e Oficial no 17º FAM.
Direção: Paulo Henrique Fontenelle
Ano: 2012
Áudio: Português
Duração: 102 minutos